18 Novembro 2024
Castas Autóctones da Beira Interior
Altitude, Identidade e Pureza Genética
Na vastidão do planalto interior de Portugal, entre serras que delimitam o horizonte e um clima marcado por extremos, a Beira Interior guarda uma das expressões mais puras da viticultura portuguesa. Aqui, a altitude não se traduz em vertentes montanhosas abruptas, mas em planaltos extensos que se erguem acima dos 400 metros, chegando facilmente aos 700 e mais. Nestas altitudes, o ciclo vegetativo da videira é mais lento, permitindo uma maturação gradual que preserva acidez, pureza aromática e elegância natural.
A região da Beira Interior é, na verdade, um mosaico de microterritórios: da Guarda às encostas da Serra da Estrela, do vale do Côa à Cova da Beira. E é justamente esse isolamento geográfico, aliado a condições climáticas severas, que favoreceu a preservação de castas antigas, muitas vezes ausentes de outras regiões. Em solos graníticos, pobres e bem drenados, resistem vinhas velhas que funcionam como verdadeiros santuários genéticos, testemunhas vivas de uma viticultura de subsistência, anterior à era da mecanização.
Conhecer as castas autóctones da Beira Interior é, por isso, mais do que um gesto de curiosidade: é um mergulho na autenticidade. A diversidade é notável, especialmente quando observamos vinhas mistas, onde a sabedoria popular e a seleção empírica determinaram ao longo de séculos a permanência das castas mais adaptadas ao rigor do clima e da altitude. Neste contexto, o papel do enólogo é o de um curador, alguém que interpreta o património que lhe é confiado e o devolve ao mundo sob a forma de vinhos singulares e memoráveis.
Castas Tintas da Beira Interior
Tinta Roriz – A Tempranillo em Portugal
A Tinta Roriz é uma das castas tintas mais conhecidas da Península Ibérica, mas no planalto da Beira Interior ganha uma nova identidade — mais fresca, mais firme, mais duradoura. Aqui, longe dos climas quentes e das maturações rápidas, esta casta revela um lado austero e elegante que poucos lhe conhecem.
Os seus cachos são médios, de bagos pequenos, película espessa e polpa densa. Apresenta um ciclo vegetativo relativamente curto, mas que se prolonga nesta região devido às noites frias e dias secos. Isso permite-lhe amadurecer lentamente, mantendo acidez elevada e taninos bem formados. Em anos equilibrados, a Tinta Roriz atinge a maturação fenólica com grande precisão.
É uma casta que prefere solos bem drenados, pobres e graníticos. Na Beira Interior, expressa-se melhor em cotas altas, com exposição solar moderada. Não gosta de excesso de calor nem de humidade prolongada, sendo sensível à podridão, mas relativamente resistente à seca.
Na adega, exige contenção. Os vinhos jovens podem ser duros, tensos e pouco expansivos, mas com tempo revelam notas de fruta vermelha, folha de tabaco, pedra molhada e pimenta preta. A madeira usada ajuda a domar os taninos e a prolongar a vida do vinho sem encobrir o seu carácter.
Quando bem trabalhada, a Tinta Roriz da Beira Interior dá origem a vinhos sérios, verticais e com excelente capacidade de guarda. Mais do que mostrar exuberância, mostra profundidade. Não quer ser protagonista — quer ser a espinha dorsal de tintos que evoluem com elegância e tempo. O resultado são vinhos estruturados, com notas de fruta vermelha, especiarias secas e uma austeridade elegante que se transforma com o tempo. Longe dos excessos de calor que tornam o Tempranillo sobremaduro noutras latitudes, a Tinta Roriz da Beira Interior é firme, vertical e de grande longevidade.
Rufete (Tinta Pinheira) – A Elegância Rústica da Cova da Beira
A Rufete é uma casta quase invisível fora do seu território de origem, mas na Beira Interior — em especial na Cova da Beira e nas zonas de fronteira com Espanha — assume um papel fundamental. Rara, discreta e surpreendentemente expressiva, é uma daquelas uvas que resistem mais por convicção do que por fama. E é exatamente nessa persistência que reside o seu valor.
Os seus cachos são soltos, de bagos pequenos e película fina. Matura cedo, o que permite evitar picos de calor e conservar uma frescura natural marcante. O ciclo é curto, mas bem adaptado às condições extremas da região. A sua estrutura delicada exige cuidado na vinha e atenção no momento da vindima, sendo uma casta que não tolera bem atrasos ou colheitas demasiado tardias.
É uma variedade que prefere solos graníticos e bem drenados, com exposição solar moderada. O seu comportamento em altitude é exemplar: mantém acidez, revela-se aromática sem exageros e raramente perde equilíbrio. Produz vinhos de cor aberta, taninos finos e acidez vibrante — tintos leves, diretos, com grande vocação gastronómica.
Na adega, a Rufete pede contenção. Vinificada com respeito, mostra um perfil perfumado, com notas de morango silvestre, flores secas, folha de chá e ervas de montanha. A madeira não deve ser dominante; o ideal é que sirva apenas para arredondar texturas. Com o tempo, pode revelar elegância inesperada, fazendo lembrar os melhores tintos de altitude da Península.
Mais do que uma casta secundária, a Rufete é parte essencial da identidade da Beira Interior. É uma casta que fala baixo, mas diz muito — sobre território, tradição e leveza com profundidade.
Marufo (Mourisco Tinto) – A Casta Invisível que Equilibra
A Marufo, também conhecida como Mourisco Tinto, é uma daquelas castas discretas que raramente protagonizam rótulos, mas cujo papel é decisivo na construção do perfil dos vinhos tradicionais da Beira Interior. Encontra-se sobretudo em vinhas velhas, onde partilha o solo com outras variedades e contribui com uma assinatura subtil mas essencial: fruta, suavidade e rusticidade equilibrada.
Os seus cachos são generosos, com bagos médios e de película fina, características que favorecem a maturação precoce e a expressão aromática direta. O ciclo vegetativo é curto, o que lhe permite escapar às oscilações térmicas do final da estação e manter um perfil frutado e acessível. É uma casta vigorosa, fácil de trabalhar no campo, e que tolera bem a seca e os solos pobres, características comuns da região.
Na adega, a Marufo atua como elemento de equilíbrio. Sozinha, pode parecer simples ou rústica, mas em lote revela-se essencial: suaviza taninos mais firmes, acrescenta corpo sedoso e fruta vermelha madura — cereja, framboesa, ameixa — com apontamentos de ervas secas e um leve vegetal que remete a vinhos de outrora. Não é feita para brilhar sozinha, mas para sustentar e integrar.
É uma casta de memória e de função, que representa bem o espírito das vinhas mistas: onde cada cepa, por mais modesta, tem um propósito. Na Beira Interior, a Marufo é a voz do fundo, o baixo contínuo que dá ritmo e profundidade aos vinhos mais autênticos da região.
Castas Brancas da Beira Interior
Síria – A Casta Rainha do Planalto
A Síria é uma das castas brancas mais enraizadas na Beira Interior, onde encontra um palco natural para expressar a sua frescura, mineralidade e sobriedade aromática. Também conhecida como Códega, Crato Branco ou Roupeiro, assume aqui uma identidade mais contida e vertical, marcada por altitude e amplitudes térmicas extremas.
Os seus cachos são médios, com bagos pequenos, película fina e polpa firme. O ciclo vegetativo é relativamente curto, mas nas cotas altas da região prolonga-se o suficiente para garantir uma maturação equilibrada. A Síria amadurece cedo, evitando excesso de álcool e preservando a acidez vibrante que a caracteriza. Quando colhida no ponto certo, revela grande precisão e pureza.
É uma casta que prefere solos graníticos e exposição solar moderada. Não lida bem com calor excessivo nem colheitas tardias, sendo sensível à oxidação. Mas nas condições certas, responde com vinhos tensos, diretos e minerais, que valorizam mais a textura do que o perfume.
Na adega, exige contenção: intervenções mínimas, fermentações controladas e, idealmente, algum tempo sobre borras finas. Os aromas remetem a marmelo, citrinos frescos, maçã verde, flor de laranjeira e pedra molhada. A madeira deve ser usada com moderação, apenas para acrescentar volume sem mascarar a delicadeza.
Quando bem trabalhada, a Síria é uma casta de elegância contida — mais atlética do que voluptuosa. Dá vinhos com grande vocação gastronómica e capacidade de envelhecimento surpreendente. Na Beira Interior, é o espelho da luz crua do planalto, da sobriedade do clima e da precisão com que o tempo molda o carácter das uvas.
Fonte Cal – A Joia Secreta do Granito
A Fonte Cal é uma das castas brancas mais enigmáticas e promissoras da Beira Interior. Rara, silenciosa e profundamente ligada ao solo granítico da região, sobrevive quase exclusivamente em vinhas velhas dispersas, onde desempenha um papel decisivo na estrutura e longevidade dos vinhos.
Os seus cachos são pequenos e compactos, com bagos de tamanho médio, película espessa e polpa firme. Apresenta um ciclo vegetativo longo e uma maturação tardia, o que, aliado ao baixo rendimento natural, contribui para vinhos de grande concentração e textura distinta. A sua produtividade é baixa, mas o retorno qualitativo é elevado — ideal para produções de pequena escala e vinhos de guarda.
Na vinha, a Fonte Cal exige solos bem drenados e um acompanhamento atento ao longo da estação. Não responde bem ao excesso de vigor nem a climas muito húmidos, mas adapta-se de forma exemplar à altitude e à rusticidade do planalto. É uma casta que prefere trabalhar devagar, acumulando acidez firme e componentes minerais ao longo de um verão seco.
Na adega, pede tempo. Fermentações lentas, madeira neutra e contacto prolongado com borras finas revelam o seu melhor lado: uma textura cremosa, acidez persistente e uma expressão aromática contida — pedra molhada, fumo subtil, maçã verde e leve infusão de ervas.
Pouco expressiva no nariz, é marcante na boca. Os vinhos com Fonte Cal são construídos para evoluir: crescem com o tempo, ganham complexidade e tornam-se aliados naturais da gastronomia. É uma casta de guarda, de profundidade e de respeito. Na Beira Interior, representa o lado mais mineral, sólido e silencioso da identidade local.
Alva / Tamarez – Estrutura que Vem do Passado
A Alva, também conhecida como Tamarez, é uma casta branca de presença discreta, muitas vezes confundida com outras variedades antigas, mas que desempenha um papel vital nas vinhas velhas da Beira Interior. Não se impõe pela exuberância aromática nem pela fama, mas pela sua capacidade de dar estrutura, volume e resistência aos brancos tradicionais da região.
Os seus cachos são grandes, de bagos médios e casca relativamente espessa. Apresenta um ciclo vegetativo médio e produtividade elevada, o que exige um controlo rigoroso do vigor na vinha. A sua maturação é equilibrada, sendo resistente à seca e bem adaptada aos solos pobres do planalto.
Na vinha, comporta-se como uma casta de suporte — não procura protagonismo, mas garante equilíbrio. É ideal para complementar castas mais delicadas ou aromáticas, conferindo-lhes base e persistência. Prefere exposições moderadas e zonas de altitude, onde o calor excessivo não compromete a acidez.
Na adega, a Alva exige precisão. O seu perfil aromático é contido, com notas discretas de fruta branca e vegetal seco. O seu valor está na textura: acrescenta corpo, estrutura e capacidade de envelhecimento aos lotes em que entra. É pouco expressiva no nariz, mas muito sólida na boca.
Ainda presente em vinhas velhas da Cova da Beira, a Alva é uma casta silenciosa — daquelas que sustentam a memória dos vinhos antigos e que oferecem aos enólogos uma ferramenta de construção, mais do que de exibição. Em tempos de uniformização, representa uma herança de equilíbrio e funcionalidade que importa preservar.
A Beira Interior como Reserva Genética Natural
Num mundo vitícola cada vez mais homogéneo, onde muitas regiões optaram por castas internacionais e práticas agrícolas uniformizadas, a Beira Interior permanece fiel à diversidade como um valor essencial. As vinhas velhas da região, muitas vezes plantadas sem plano aparente, guardam um saber antigo que hoje se revela precioso: misturas de castas brancas e tintas que, ao longo de gerações, provaram funcionar em conjunto, assegurando resiliência, equilíbrio e uma resposta natural aos desafios do clima e das pragas.
Esta diversidade não é só uma curiosidade genética — é uma vantagem ecológica e cultural. A coexistência de diferentes variedades numa mesma parcela cria sistemas mais robustos, menos dependentes de tratamentos químicos e mais adaptáveis a anos difíceis. Além disso, permite aos enólogos possibilidades raras, onde cada uva tem um papel específico na construção do vinho final. É a inteligência coletiva da vinha a manifestar-se no copo.
Para os enólogos e viticultores que aqui trabalham, a missão transcende a produção de vinho: é uma forma de arqueologia viva. Estudam cada cepa, tentam identificar castas esquecidas, analisam o comportamento das variedades em anos distintos e avaliam como melhor interpretá-las com técnicas modernas, mas respeitosas. Cada vinho é um ensaio sobre o tempo e o lugar. Cada garrafa é um manifesto de resistência cultural e uma prova de que o futuro pode nascer das raízes mais profundas do passado.
Conclusão
A Beira Interior não se impõe por volume ou fama. Impõe-se pela sua verdade. Numa era em que muito se fala de terroir, aqui ele é vivido em cada videira antiga, em cada gesto de poda, em cada colheita decidida com os olhos no céu. Não se trata de uma narrativa construída — é uma realidade profundamente enraizada na vida rural, nas escolhas feitas com tempo, e no respeito pelos ciclos da natureza.
Os vinhos da Beira Interior são discretos, mas densos de sentido. Têm a firmeza de quem resiste e a delicadeza de quem escuta. Não procuram impressionar no primeiro gole, mas antes conquistar pela persistência, pelo equilíbrio e pela verdade líquida que carregam. Há uma espiritualidade que percorre esta paisagem: na forma como os socalcos dialogam com o vento, na forma como as castas autóctones, muitas vezes quase extintas, continuam a sobreviver lado a lado, como testemunhos de um saber coletivo que se recusou a desaparecer.
Provar os vinhos desta região é mais do que conhecer castas raras. É encontrar um Portugal menos visitado, mas mais profundo. Onde cada vinho conta uma história que não se aprendeu nos livros, mas que se guardou nos gestos repetidos ao longo de gerações. É, no fundo, um apelo à consciência — de que há ainda territórios onde o tempo vale mais do que a pressa, e onde o vinho continua a ser um espelho da terra e das pessoas que nela vivem.
Na Beira Interior, o futuro do vinho português encontra uma das suas raízes mais sólidas: não no que se perdeu, mas no que sempre resistiu.
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Hélder Cunha Winemaker
A minha vida é o vinho.
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