18 Novembro 2024
A Perceção da Mineralidade no Vinho
Ciência, Mito e Experiência Sensorial
A mineralidade é, provavelmente, uma das palavras mais evocadas — e menos compreendidas — no vocabulário enófilo moderno. Nos últimos anos, tornou-se sinónimo de elegância, pureza e ligação ao terroir, mas permanece envolta em ambiguidade. O que significa realmente quando alguém diz que um vinho tem “notas minerais”? Estamos a falar de algo físico e mensurável, ou de uma impressão sensorial e culturalmente aprendida?
Ao contrário de aromas bem definidos como frutos vermelhos, baunilha ou pimenta preta, a mineralidade não corresponde diretamente a compostos químicos específicos. No entanto, é unanimemente reconhecida por enólogos, sommeliers e consumidores experientes como uma perceção distinta — algo entre o salgado, o terroso, o pedregoso e o metálico. Mas será esta sensação um reflexo do solo? Um resultado da acidez? Ou uma construção mental que depende do contexto?
Este artigo pretende desmontar mitos, explorar evidências científicas e sensoriais e refletir sobre como a mineralidade pode (ou não) nascer no vinho. Não é apenas uma questão académica: compreender este conceito ajuda-nos a valorizar vinhos subtis, a fugir da exuberância artificial e a defender estilos que respeitam o lugar de origem e a intervenção mínima. A mineralidade é, no fundo, uma ponte entre o que sentimos no paladar e o que imaginamos do lugar onde aquele vinho nasceu.
A viagem que propomos não tem respostas fechadas, mas lança luz sobre um dos temas mais fascinantes do universo enológico — e talvez nos aproxime da verdadeira essência do terroir.
O Que É (e o Que Não É) Mineralidade no Vinho?
Quando falamos de mineralidade, estamos a entrar num território onde o vocabulário técnico e a perceção subjetiva se entrelaçam. A mineralidade não é um aroma identificável numa análise química tradicional — mas é, sem dúvida, uma perceção partilhada por muitos. As descrições mais comuns incluem pedra molhada, giz, ardósia, fumo subtil, apara de lápis, salinidade e até ferro ou iodo.
Importa desde logo dizer que os minerais do solo não são transferidos para o vinho em quantidade suficiente para serem percecionados diretamente. Não estamos a beber fragmentos de granito ou calcário. A absorção de minerais pela videira existe, mas a concentração no vinho final é ínfima. O que acontece, provavelmente, é que a mineralidade é um efeito sensorial indireto, provocado por um conjunto de fatores como acidez, compostos voláteis, texturas e até a ausência de elementos mais “gritantes”, como a madeira nova ou a fruta exuberante.
Por isso, mineralidade não é sinónimo de teor mineral. É, antes, uma expressão sensorial complexa, que depende tanto da fisiologia do vinho como da experiência e da sugestão cultural do provador. Muitas vezes, está associada à tensão gustativa, à frescura linear e à persistência aromática discreta. Em vinhos mais neutros ou subtis — como certos brancos de altitude ou de regiões atlânticas — essa “voz baixa” torna-se mais audível.
Origem da Perceção Mineral: Solo, Clima ou Fermentação?
A origem da mineralidade tem sido objeto de investigação científica e também de romantismo. Uma das hipóteses mais populares — e mais debatidas — é a de que os solos pobres e pedregosos geram vinhos mais minerais. A verdade é mais complexa. Embora o solo influencie o vigor da planta, o stress hídrico, a drenagem e a maturação, não há provas diretas de que os componentes minerais passem para o vinho de forma detetável.
O que o solo pode influenciar é a expressão fisiológica da videira: solos bem drenados obrigam as raízes a aprofundar-se, levando a uma maturação mais lenta e a uvas com maior acidez, menos açúcares e perfis mais subtis. Esses fatores, por sua vez, podem favorecer a tal perceção de mineralidade.
Outro elemento determinante é o clima. Regiões frescas, de altitude ou com forte influência marítima, tendem a produzir vinhos com maior tensão, menor pH e maior concentração de ácidos málico e tartárico — condições que favorecem o aparecimento de notas “minerais”. A mineralidade pode, portanto, ser um reflexo sensorial de uma acidez firme e de compostos voláteis neutros, mais do que de qualquer pedra no subsolo.
Além disso, o papel da fermentação espontânea, com leveduras indígenas, pode trazer compostos sulfurosos voláteis que, em concentrações muito baixas, lembram pedra de isqueiro ou sílex. Estes compostos, se bem integrados, podem reforçar a tal perceção mineral — especialmente em brancos vinificados com mínima intervenção.
O Papel do Enólogo na Expressão da Mineralidade
Se o terroir dá o potencial, o enólogo molda a forma como essa mineralidade se expressa. O primeiro passo está na condução da vinha: limitar rendimentos, evitar adubação excessiva e favorecer um equilíbrio natural entre vigor e produção. Uvas equilibradas, colhidas no ponto certo de maturação (sem excesso de açúcar nem défice de acidez), são essenciais.
Na adega, a escolha de técnicas de vinificação pode amplificar ou abafar esta característica. Fermentações espontâneas, sem correções químicas, respeitam a identidade das uvas e mantêm a tensão natural. Evitar barricas novas ou excesso de batonage é fundamental para não mascarar as notas mais subtis. O uso moderado de sulfuroso e a limitação da oxidação também ajudam a preservar o perfil direto e “pedregoso”.
Além disso, o enólogo pode optar por técnicas como a fermentação em inox, cimento ou ânforas — recipientes que respeitam a expressão pura da fruta e da acidez. O estágio sobre borras finas, se bem gerido, pode acrescentar textura e complexidade sem interferir na mineralidade.
Por fim, a decisão de não polir excessivamente o vinho — aceitar certa rusticidade e deixar que a acidez e a salinidade se destaquem — é uma escolha consciente. A mineralidade raramente é exuberante: é uma assinatura discreta, mas poderosa, que precisa de espaço para ser notada.
Exemplos em Portugal: Onde Sentimos a Mineralidade?
Portugal oferece vários exemplos de regiões e vinhos onde a mineralidade se expressa de forma notável. Colares, com os seus solos arenosos e influência marítima extrema, origina brancos de Malvasia com salinidade e estrutura tensas. Os tintos de Ramisco, elegantes e ácidos, exibem notas terrosas e iodadas inconfundíveis.
Na Bairrada, os brancos de Bical e Cercial mostram mineralidade calcária, giz, especialmente quando vinificados sem madeira. A acidez vibrante e o perfil austero lembram grandes brancos de regiões frescas do mundo.
O Dão, especialmente nas sub-regiões de altitude, como Penalva do Castelo ou Vila Nova de Tazem, revela vinhos com frescura, tensão e delicadeza — tanto nos Encruzados como nos Jaen. Os solos graníticos contribuem para a verticalidade aromática e uma textura cristalina.
Nos Açores, em particular no Pico, a combinação de solos vulcânicos, salinidade extrema e vinhas rasteiras junto ao mar produz brancos absolutamente únicos. A mineralidade aqui é literal — uma verdadeira impressão de pedra e mar no copo.
E até nas encostas frescas da região de Lisboa, como em vinhas de altitude perto de Montejunto ou Sintra, a Chardonnay ou o Arinto podem revelar tensão e notas de giz ou maresia, quando colhidos cedo e vinificados com discrição.
Conclusão
A mineralidade no vinho continua a ser uma questão de perceção — uma sensação mais sentida do que explicada. Mas essa subjetividade não a torna menos real. Pelo contrário, mostra-nos como o vinho é mais do que uma soma de compostos químicos: é uma linguagem sensorial que apela à memória, ao lugar e ao silêncio.
Em tempos de vinhos exuberantes, cheios de madeira, fruta tropical ou doçura excessiva, a mineralidade tornou-se símbolo de autenticidade e precisão. Representa o vinho que sussurra em vez de gritar. O vinho que nos faz parar e ouvir o terroir. E, mais do que isso, representa o compromisso do enólogo com a origem, com a transparência e com o tempo.
Para quem produz, é um desafio técnico e uma escolha estética. Para quem bebe, é uma descoberta — às vezes subtil, mas inesquecível. O verdadeiro poder da mineralidade está no que nos sugere: que o vinho, como a terra, tem profundidade, textura e camadas a revelar.
Da próxima vez que sentir salinidade, pedra, apara de lápis, ou giz no copo, pare um instante. Talvez esteja a ouvir a voz do solo — não literalmente, mas sensorialmente. E isso, no fim, é o que mais importa.
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Hélder Cunha Winemaker
A minha vida é o vinho.
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